A entrega



Quando aceitei a ideia do "Sorriso Postal" lançada no início do mês de Novembro, não imaginava sequer a reviravolta que a minha vida iria sofrer nos dias subsequentes. Poderia ter abandonado a palavra e o compromisso assumidos que, estou quase certa, ninguém iria levar a mal, dada a concentração que seria necessária para eu poder tratar da "reviravolta" que me atingira: uma filha a lutar pela vida.
No entanto não foi isso que fiz e entre os corredores de um hospital, fui mantendo o equilíbrio e a sanidade através da minha contribuição afecta às limitações que tinha: ali escolhi a foto, escrevi o texto do meu primeiro postal e consegui uma instituição que aceitasse os "nossos" postais. A ideia sonhada e apresentada pelo Paulo Kellerman estava bem presente e começava a ganhar contornos de magia indescritível.
O regresso a casa tardava, o que só veio a suceder nas vésperas do Natal, transformando-se assim no melhor dos presentes.
Com a vida a ser retomada aos poucos, o projecto dos postais mantinha-se vivo e, de repente, numa manhã de Dezembro, os postais materializam-se na minha caixa de correio. Um enorme sorriso de alegria pairava no meu rosto. Contactei a Dr.ª Liliana Araújo do "Solar da Camélias", em Telhadela, Albergaria-a-Velha (distrito de Aveiro), para acertarmos a melhor forma de entregar tantos sorrisos. Agendado que ficou o dia, faltava escrever os postais. Espalhados na mesa e virados ao contrário sem ver a foto, fui escolhendo aleatoriamente um postal, fazendo-o corresponder a um dos nomes que tinha na lista que fora disponibilizada. Concluída a tarefa, juntei-os e atei-os com uma fita vermelha. Estavam prontos, restava esperar pelo dia.
Na passada quarta-feira, apresentei-me nas instalações da instituição, onde fui recebida de braços abertos e depois das apresentações, numa mistura de mim entre o medo, a hesitação e a ansiedade, fui encaminhada para a sala das actividades onde os idosos aguardavam por uma surpresa que lhes tinha sido comunicada. Deparei-me com muitos pares de olhinhos brilhantes, curiosos pela novidade de algo diferente. Já ali começava a emoção de uma experiência arrepiante.
Apresentei-me, falei um pouco do projecto e neste enquadramento, com o apoio da animadora Rita, sabendo que havia algumas ausências devido a consultas e a indisponibilidade física, iniciei a chamada para a entrega em mão de cada um dos postais à pessoa correspondente. A animadora pedia-lhes a descrição do que viam e depois lia em voz alta o texto para todos os presentes, já que as dificuldades visuais de alguns idosos impediam que fossem os próprios a fazê-lo. O entusiasmo de alguns era notório porque as suas capacidades assim o permitiam: falavam, contavam coisas, declamavam poemas, manifestavam-se sobre o seu postal. Outros mais emocionais, falavam com o olhar e assisti a olhares sorridentes e brilhantes.
Sabendo que a escolha dos postais foi aleatória e ver posteriormente que algo contido neles correspondia a um pormenor da sua vida, mesmo que muito doloroso, deixou-me emocionalmente sensibilizada. A voz tremeu-me de comoção em determinados momentos e mais ainda quando chamo por um nome e dizem-me que já não está. Uma idosa que entretanto falecera. O impacto foi grande e esse instante só demonstrou quão frágeis somos e como a vida é veloz a passar por nós. Seja um adulto, seja um jovem, um idoso ou uma criança. Todos os momentos devem ser válidos para a demonstração de afectos, de forma livre e sem esperar contrapartidas, porque um instante deixa de sê-lo logo a seguir. E a oportunidade passou.
Em jeito de conclusão, o dia foi preenchido com uma experiência feita turbilhão emocional e culminou com uma demonstração de carinho por parte dos representantes da instituição e dos seus utentes, porque para além do bem receber, o mimo com um coração carregadinho de afectos foi um momento muito belo.
Reitero a generosidade dinamizante e sem exigências do Paulo Kellerman, bem como a amizade e a partilha deste grupo que contribui com simplicidade e imenso carinho para este projecto tão especial, que emociona pelo destino do sorriso postal e pelo efeito que tem em quem o recebe. Dar um sorriso postal e receber um imenso sorriso.

Cristina Vicente

5 comentários:

  1. Receber o sorriso postal na nossa instituição, na nossa Casa, foi um momento único! A dádiva de alguém, que se entrega a nós, sem pedir nada em troca, é um gesto raro na sociedade de hoje. Mas são estes que realmente preenchem a alma e o coração dos nossos idosos. Recebemos os postais e com a nossa gratidão demos Amor, mesmo que só com
    o olhar...É tão "simples" embalar o seu espírito, é tão "simples" fazê-los sentirem-se importantes para alguém, é tão "simples" dar genuinamente... é, mas só alguns, especiais, o conseguem fazer: à Cristina Vicente e ao mentor Paulo Kellerman, ficamos profundamente gratos! Liliana Araújo, Solar das Camélias

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    1. muito obrigado pela receptividade e entusiasmo... este projecto só faz pleno sentido se houver quem o acolha com generosidade e sorrisos, como foi o caso... obrigado pelos sorrisos que nos causaram... forte abraço

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  2. A importância deste projecto está nesta partilha de gestos, na entrega de emoções, na candura de um sorriso, no embargo das palavras de todos os que dele fazem parte... nós e os outros, os outros e nós, quem dá e quem recebe: a reciprocidade dos afectos.
    Muito obrigada, com um abraço apertadinho :)

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  3. Que maravilhosa iniciativa! Tão feliz por fazer parte ❤️ e ter contribuído!
    Obrigada, Paulo Kellerman!

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